segunda-feira, 24 de julho de 2017

UM FILHO DE DEUS PODE SE SENTIR UM FILHO DA IRA?



Quando sentimos Deus presente em meio aos nossos sofrimentos somos capazes de passar e enfrentar o que for, sejam adversidades, angustias, tribulações, doenças e etc., pois sabemos que Ele é conosco e independente do que for, nEle teremos força para prosseguir. Mas, e quando a situação muda? E quando estamos em meio a terríveis provações e ao invés de sentirmos a mão de Deus nos consolando e nos dando forças para prosseguir, sentimos como se o próprio Deus além de nos estar rejeitando, está nos esmagando com Suas próprias mãos? E o pior é quando isso acontece quando estamos levando uma vida de santidade e obediência a Palavra dEle, rejeitando o pecado e se sujeitando a pessoa de Cristo. Será que isso é possível? Será que é possível um verdadeiro eleito de Deus se sentir um vaso de desonra e destinado à ira, mesmo não sendo? Bem, por pior que isso possa parecer para alguns cristãos, isso não somente é possível como também ocorre na vida de muitos santos ao longo da história. Um deles é o salmista do Salmo 88. O Salmo 88 é conhecido como o Salmo mais triste da bíblia, diferente de outros Salmos, este Salmo não termina com nenhuma nota de esperança ou livramento da parte de Deus, a última palavra deste Salmo é “trevas”, o salmista termina dizendo que todos os seus amigos e companheiros o haviam abandonado, e que sua única companhia eram as trevas (Sl 88:18). Este é o único salmo em todo o saltério que termina desta maneira.

Talvez alguns digam: “ah, certamente o salmista estava sendo afligido por Deus por causa de algum pecado que ele havia cometido.” – Certamente o salmista era um pecador diante de Deus, assim como qualquer outro homem (Rm 3:23), porém, a palavra “pecado” não aparece em nenhum lugar neste Salmo, diferente de outros salmistas que atribuem a causa de seus sofrimentos a algum pecado que haviam cometido (vide Sl 51, Sl 25:7, Sl 32 e etc), o salmista do Salmo 88 em momento algum diz que a causa de seus sofrimentos advinham de algum pecado que ele havia cometido contra Deus. E aqui vale ressaltar que nem todo sofrimento na vida de um filho de Deus é consequência do pecado, muitos cristãos ao verem outro irmão ser afligido por algum motivo, ao invés de consolá-lo e usarem de misericórdia, já se aproximam com 5 pedras na mão, dizendo que tal sofrimento advêm de algum pecado do mesmo, foi assim que os amigos de Jó fizeram (Jó 4:1 – 7:21) e é assim que muitos ainda fazem nos dias de hoje. Os discípulos de Jesus ao encontrarem um homem cego de nascença, perguntaram: "Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que ele nascesse cego?" (João 9:2), Jesus os respondeu dizendo: "Nem ele nem seus pais pecaram, mas isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele.” (João 9:3). “Amai-vos uns aos outros” (Jo 13:34), é o que Deus nos instrui a fazer.

O salmista não estava simplesmente passando por uma faze ruim que durava somente alguns dias, muito pelo contrário, ele diz que as angústias e aflições que o afligiam o acompanhavam desde sua mocidade (Sl 88:15), eram sofrimentos que vinham o acompanhando por toda a sua vida, dia após dia. Dia e noite ele clamava a Deus por socorro (v.1), e além de não receber nenhum tipo de socorro aparente da parte de Deus, ou de sequer ter suas orações ouvidas, sob sua ótica, ele diz que durante toda a sua vida, o único sentimento que sente vindo da parte de Deus é o seu furor, ele ainda diz: “Puseste-me no abismo mais profundo, em trevas e nas profundezas... tu me afligiste com todas as tuas ondas...” (Salmos 88:6-7).

Que terrível experiência é esta! A de ser um verdadeiro filho de Deus, de levar uma vida no centro de Sua vontade, e ainda assim sentir o céu fechado sobre sua cabeça, e a ira de Deus sobre os seus ombros. Jó também experimentou isso, mas diferente de Jó, o salmista não vislumbrou nenhum tipo de livramento visível da parte de Deus, e provavelmente ele foi alguém que viveu toda a sua vida debaixo destes conflitos, mesmo sendo um homem temente a Deus.

Não sabemos exatamente a identidade deste salmista; sua autoria é incerta. Sobre isto, o rev. Augustus Nicodemus diz o seguinte: “O Salmo diz que ele foi escrito por Hemã, o Ezraíta, e diz que ele era dos filhos de Corá. Os filhos de Corá eram uma das famílias de Levi que serviam a Deus no templo, eles eram levitas que ministravam louvor a Deus no templo, com isto, vemos que este Hemã era alguém consagrado a Deus e temente a Deus. As atribuições do salmo diz que se trata de um salmo didático, ou seja, foi algo que ele escreveu para ensinar, então, era alguém maduro o suficiente para entender que a experiência dele poderia ajudar outras pessoas, e ele escreveu um salmo para ajudar outras pessoas, para ensinar outras pessoas que estariam passando pelo mesmo sofrimento que ele passou.” Ele diz ainda: “No livro de 1 Rs 4:31 está escrito que Salomão era mais sábio que todos os homens, mais sábio do que Etã, ezraíta, e mais sábio do que Hemã. E, se este Hemã se tratar do mesmo Hemã do salmo 88, só existia um homem mais sábio que ele, o rei Salomão¹”. Veja também 1 Cr 2:6.

Não sabemos também a causa exata do sofrimento desse homem de Deus, certamente, por se tratar de um levita que servia a Deus no templo, seu sofrimento não estava relacionado com a lepra, como alguns dizem, do contrário, ficaria impedido de ministrar no santuário, como os versos do 10-12 dão a entender que ele fazia, pois, mesmo em meio a tamanho sofrimento e se sentindo como alguém que havia sido rejeitado por Deus, ao dizer que se via como alguém que estava contado entre os mortos (v. 3-6), ainda assim ele louvava a Deus, falava de Sua bondade, Suas maravilhas e Sua justiça (v. 10-12), e questionava ao SENHOR dizendo que se ele fosse contado a morte e viesse a descer a sepultura, que proveito Deus poderia ter nisso? Visto que os mortos não o poderiam louvar. Vemos com isto que, mesmo o salmista se sentindo afligido pelo próprio Deus e debaixo do seu furor, ainda assim ele O louvava e proclamava a Sua justiça diante dos homens. Que maravilhoso exemplo!

Matthew Henry diz o seguinte sobre isso: “As primeiras palavras do salmista são as únicas de consolo e sustento deste salmo. Deste modo, os bons podem ser muito afligidos, podem chegar a ter pensamentos desanimadores sobre as suas aflições, e chegar a conclusões sombrias sobre o seu final, pela força da melancolia e fraqueza da fé. Queixa-se principalmente do desagrado de Deus. Até mesmo os filhos do amor de Deus podem pensar, às vezes, que são filhos da ira, e que nenhum problema exterior pode ser tão difícil para eles como este.²”

William MacDonald diz o seguinte em seu comentário: “E assim termina o mais triste dos salmos. Para aqueles que não entendem a razão para esse salmo ter sido incluído na Bíblia, leiam o testemunho de J. N. Darby. Em certo momento difícil de sua vida, ele declara que esse foi o único texto da Escritura que o ajudou, pois percebeu que alguém havia enfrentado tristeza tão profunda quanto ele. Clarke cita, de uma fonte desconhecida: ‘Há apenas um salmo como esse em toda a Bíblia, apresentando uma experiência tão rara; porém, trata-se do único salmo que assegura ao aflito mais desesperado que Deus não o abandonará³’”.

Este salmo foi escrito por um verdadeiro servo de Deus, que durante toda a sua vida experimentou momentos de extremas angustias e terríveis aflições, e cremos que é exatamente por isso que este salmo se encontra nas Escrituras. Deus nunca nos enganou, o cristianismo que é apresentado por ai, que diz que se você vier para Cristo todos os seus problemas serão resolvidos e você levará uma vida livre de adversidades, é um cristianismo falso. A bíblia é muito honesta, ela relata os sofrimentos daqueles que aceitaram a Cristo, que caminham com Deus, e que de fato pertencem a Ele e que mesmo assim não são poupados de sofrerem neste mundo. Jesus disse: “No mundo tereis aflições...” – Mas também disse: “Tende bom ânimo, eu venci o mundo.” (João 16:33)

Que Deus em Cristo, através do sEu Espírito, nos ajude a concluir a honrosa e nobre missão de sofrer pelo sEu nome. (At 9:16)

¹ - Parte extraída de uma mensagem do rev. Augustus sobre o salmo 88, na primeira igreja presbiteriana de Goiânia.
² - Texto extraído do comentário bíblico de Matthew Henry sobre o salmo 88
³ - Texto extraído do Comentário Bíblico popular do Antigo Testamento, de William MacDonald, ed. Mundo cristão, pag. 461

Por Hamilton Fonseca